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segunda-feira, 17 de maio de 2010

USP: A valorização do ensino de graduação

Por Ronaldo de Breyne Salvagni *

Já de alguns anos para cá vem ocorrendo forte valorização da produção de "papers" pelos docentes. Chegou-se ao ponto de se afirmar que a USP é uma "Universidade de Pesquisa" (seja lá o que isso queira significar, até por se tratar de uma contradição semântica). Isto pode ter alguns aspectos positivos, mas está provocando diversas distorções, uma das mais graves sendo a desvalorização do ensino de graduação. A graduação nunca foi uma atividade de grande "status" acadêmico - não confere prêmios Nobel nem gera visibilidade no noticiário -, mas a situação piorou muito nos últimos anos.

A Universidade

Uma Universidade pública é criada e mantida pela Sociedade, e a ela deve prestar contas e retribuir os recursos investidos. A alma da Universidade é o saber, o conhecimento, e seu objetivo principal é o retorno social em curto, médio e longo prazo, realizado através das suas atividades-fim, que são: (a) geração de conhecimento, (b) incorporação do conhecimento gerado fora dela, e (c) transmissão desse conhecimento para o meio social em que ela está inserida e que a mantém. Sem esse vínculo social, a Universidade perde a sua razão de ser.

As atividades-meio (algumas vezes equivocadamente definidas como atividades-fim) realizadas pela Universidade para atingir seus objetivos são o ensino, a pesquisa e a extensão. Se a USP é uma "Universidade de Pesquisa", ela também é uma "Universidade de Ensino" e uma "Universidade de Extensão". Seria um extraordinário empobrecimento restringir ou focar em apenas uma dessas atividades.

A avaliação dos docentes

De alguns anos para cá, a CERT - Comissão Especial de Regimes de Trabalho da USP, órgão centralizado na Reitoria e responsável pela avaliação do trabalho individual dos docentes, vem valorizando extraordinariamente a publicação de "papers". Docentes têm contratos recusados, ou têm seu regime de trabalho reduzido, se não atendem esse requisito da forma estabelecida por aquela Comissão. Não se tem notícia de docentes desligados ou rebaixados por ministrar poucas aulas ou por não participar de atividades de extensão (será que não existem esses casos?).

A CERT alega que apenas aplica os critérios definidos pelas respectivas Unidades ou Departamentos. Na prática, entretanto, esses critérios devem incluir a publicação de "papers", e isso é o que ela prioriza. Essa valorização extraordinária dos "papers" sinaliza ao corpo docente (em especial aos mais jovens) que isto é O QUE É IMPORTANTE, e as demais atividades são meros complementos. Note-se que, na verdade, o critério prioriza a publicação, e a pesquisa passa a ser apenas um meio de obter material para publicar. Este critério desequilibrado está deformando perigosamente o perfil da Universidade, afastando-a mais e mais das necessidades e desejos da Sociedade local, que a sustenta, fazendo-a perder seu rumo e se afastar do seu objetivo primeiro.


Independentemente do critério adotado, aparece aqui a questão de se ter uma Comissão, de cerca de uma dezena de membros, com o objetivo de avaliar periodicamente mais de cinco mil docentes, em todas as suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, nas mais variadas áreas de conhecimento, e com o poder de impedir contratos e reduzir regimes de trabalho. Parece muito pouco provável que esse tipo de organização possa produzir uma avaliação completa, profunda e justa de cada docente. Por outro lado, a avaliação individual e a decisão sobre contratos e regimes de trabalho ocorrem à revelia das Unidades e Departamentos nos quais os respectivos docentes estão alocados. É paradoxal que, ao mesmo tempo em que os Departamentos e respectivas Unidades estão sendo avaliados e cobrados em seus desempenhos globais, as pessoas que realm ente desenvolvem os trabalhos sejam avaliadas e cobradas por outro órgão, externo ao Departamento, não comprometido com (e normalmente nem interessado, ou informado sobre) as metas e problemas maiores daqueles Departamentos e Unidades. Ou seja, o Departamento é cobrado, mas não é ele que tem poder de cobrar os executores das atividades.

O "tripé" Ensino, Pesquisa e Extensão

As atividades de ensino, pesquisa e extensão devem ser consideradas igualmente importantes, e desenvolvidas pela Universidade de forma harmônica e equilibrada, para se obter em sua plenitude o retorno social aos respectivos setores, que é o objetivo maior da Universidade. Assim, o conjunto das três atividades deve ser exigido e integrar qualquer critério da avaliação existente ou que venha a existir para a Universidade, suas Unidades e Departamentos, ou seja, deve ser uma exigência aplicável à instituição. Porém, é muito questionável estender essa exigência ao nível individual. Por que exigir de um indivíduo que ele faça algo que não gosta e não vai fazer bem? Será bom termos pesquisas pobres feitas só para atender as exigências dos órgãos centrais, ou a ulas mal preparadas dadas por obrigação? Por que não aproveitar de cada um o que sabe, gosta e quer fazer bem? Será que a eficiência e o desempenho de um Departamento ou Unidade não será maximizada ao se utilizar o que cada indivíduo tem de melhor?

Um dos mitos ou dogmas mais comuns (um tipo de mantra repetido por muitos sem nenhuma reflexão ou espírito crítico) é o da "indissociabilidade do ensino e pesquisa", de que não pode haver bom ensino sem pesquisa, entendido como a afirmação de que um bom professor tem que pesquisar. Nada mais falso, pois um bom professor pode e deve (e naturalmente o faz) acompanhar a evolução e as pesquisas na sua área de atuação, mas é totalmente desnecessário que seja ele o autor dessas pesquisas.

Além disso, quem tem melhores condições de saber o "mix" ideal das atividades de ensino, pesquisa e extensão que um determinado setor social precisa e deseja é o próprio Departamento correspondente. Assim, ninguém melhor que este para definir e avaliar o corpo docente adequado para atender essa demanda. A conclusão é que a exigência de conjunto de atividades simultâneas em ensino, pesquisa e extensão deve ser feita em nível institucional, mas não tem sentido exigir isso no nível individual.

Algumas providências

(1) Descentralização da Avaliação Docente: A avaliação individual centralizada dificilmente pode ser justa e adequada num contexto em que as Unidades e Departamentos também são avaliados, abrangendo enorme quantidade e variedade de ramos de conhecimento. A Universidade deve ser avaliada e cobrada pela Sociedade que a sustenta. Por sua vez, a Universidade deve avaliar e cobrar as Unidades. Estas Unidades avaliam e cobram os Departamentos e estes, por sua vez, é que devem avaliar e cobrar seu corpo docente e funcionários.

(2) Verbas versus Claros: Algumas formas de administração podem ser adequadas para o serviço público em geral, mas não o são necessariamente no contexto universitário. Dificilmente pode se considerar que a melhor forma de administrar o corpo docente é através da decisão centralizada da Reitoria sobre a quantidade, nível e regime de trabalho dos docentes de cada Departamento. Parece muito mais razoável que cada Unidade e Departamento tenha uma alocação de verba orçamentária para pessoal docente, e as decisões de quantidade, nível e regime fiquem a cargo de cada Departamento, de acordo com as suas necessidades, lembrando que haveria cobrança pelo seu desempenho e resultados.

(3) A Avaliação Individual: Não é razoável (nem eficiente) exigir-se o envolvimento de cada docente individual nos três tipos (ensino, pesquisa e extensão) de atividades institucionais. Uma sugestão razoável seria esperar-se atuação excelente em pelo menos uma delas e participação significativa em alguma das outras duas. Para valorizar a graduação, poder-se-ia exigir sempre alguma participação nessa atividade, não necessariamente dando aulas: organização de cursos, produção de material e livros didáticos, coordenação, etc.. A criação de remuneração adicional, proporcional à carga didática além da mínima requerida, seria uma forma extremamente eficaz de demonstrar a valorização dessa atividade pela Universidade.

(4) A Avaliação Institucional e os Setores Sociais: A avaliação institucional (Universidade, Unidade ou Departamento) deve ser feita sob a luz do objetivo maior da Universidade, em termos do retorno social. Desta forma, fica difícil conceber qualquer critério de avaliação adequado sem a participação efetiva dos correspondentes setores da Sociedade. A sempre citada "avaliação pelos pares", se exclusiva, tende perigosamente para o corporativismo. A participação de docentes estrangeiros em comissões de avaliação também fica muito questionável sob essa luz, indagando-se por que esses convidados externos teriam melhores condições de avaliar a interação da Universidade com o meio social local. Esse arranjo só faz algum sentido se o objetivo da Universidade for deturpado, passando a envolver algum tipo de competição internacional, disputando-se colocação em "rankings" estabelecidos em países estrangeiros, com critérios gerados por outros interesses.

* Ronaldo de Breyne Salvagni é professor titular do Departamento de Engenharia Mecânica Escola Politécnica da USP

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